Resemha Estratégica
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“Vamos começar do zero, todos nós. Vamos começar a ouvir uns aos outros novamente, ver uns aos outros, mostrar respeito uns aos outros.” Com este apelo em seu discurso de posse, o presidente Joe Biden conclamou seus compatriotas a encerrarem a “guerra incivil” que divide a sociedade estadunidense em raivosas frações delimitadas por linhas de fraturas ideológicas, políticas e sociais, frequentemente, superpostas.
Saudado quase universalmente como um símbolo do “retorno à normalidade” dos EUA, após o turbulento quadriênio de Donald Trump, em realidade, Biden sinaliza uma retomada do controle absoluto das rédeas do poder pelas facções mais agressivas do Establishment estadunidense.
Para estas, Trump era um intruso não totalmente maleável aos seus desígnios e, por conseguinte, um fator de complicação para a agenda de preservação da estrutura de poder hegemônico global integrada por elas (o “governo mundial”, como a chamamos nesta Resenha), em crise terminal frente aos impulsos da mudança de época em curso, com o esgotamento do seu “modelo incivilizatório” e a transferência do centro de gravidade geoestratégico-geoeconômico do planeta para o eixo eurasiático, depois de mais de dois séculos de domínio do eixo transatlântico.
Tal expectativa para o governo de Biden é reforçada pela sua seleção para posições-chave do seu gabinete de veteranos operativos daquele aparato de poder, todos ferrenhos adeptos do “excepcionalismo” estadunidense e das intervenções militares como instrumentos favoritos de política externa.
Esta lista inclui: o secretário de Estado Anthony Blinken; o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan; o coordenador de assuntos do Oriente Médio do Conselho de Segurança Nacional Brett McGurk; a diretora de Inteligência Nacional Avril Haines; e o secretário de Defesa Lloyd Austin.
Merecem destaques especiais as nomeações de Victoria Nuland como secretária de Estado Adjunta para Assuntos Políticos, e Samantha Power para a presidência da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). No governo de Barack Obama (2009-2017), Nuland teve um papel crucial na derrubada do presidente ucraniano Viktor Yanukovich, enquanto Power, como embaixadora nas Nações Unidas, atuou com denodo para apoiar as intervenções militares “humanitárias” na Síria, Iraque e Iêmen.
Além da agenda belicista, Biden deverá contemplar com destaque as pautas identitárias, ambientais e econômicas, em especial, estas últimas, agregadas na concepção do chamado “Grande Reset”, promovido pelas elites supranacionais agregadas no Fórum Econômico Mundial (WEF), que apresentará o tema com pompa e circunstância na sua reunião deste ano, que será realizada de forma virtual entre 25 e 29 de janeiro, a partir de sua sede em Davos, Suíça.
Para enquadrar-se no “Reset”, cujo objetivo declarado é a promoção de um “capitalismo inclusivo”, Biden convocou o veterano ex-senador e ex-secretário de Estado John Kerry, que deverá ser o seu representante em Davos. Em um painel promovido pelo WEF, em novembro, já indicado para a posição, um empolgado Kerry explicitou o compromisso do futuro governo de Biden com a pretendida “reconfiguração” da economia mundial: “Sim, ele [o “Grande Reset”] acontecerá. E eu acho que acontecerá com uma velocidade maior e uma intensidade maior do que muita gente imagina (The Hill, 03/12/2020).”
De fato, as elites “globalistas” de Davos pretendem usar a emergência sanitária criada pela pandemia de Covid-19 para acelerar a implementação do “Reset”, com a incorporação das pautas geradas pela suposta emergência climática nas políticas econômicas, subordinando as atividades produtivas em geral, a critérios de “sustentabilidade” e “neutralidade de carbono”, os novos indicadores pretendidos para arbitrar as iniciativas e políticas de desenvolvimento, principalmente, nas economias emergentes.
Em termos históricos, o “Reset” (reinicialização, em inglês) é apenas a mais recente ação das forças hegemônicas oriundas do antigo Império Britânico, com o intuito de se “reiniciarem” para preservar a sua hegemonia diante de novos ventos de mudança históricos, como ocorreu em momentos específicos do século XX. O “reinício” se deu com a inclusão do componente estadunidense ao que viria a ser conhecido como o Establishment anglo-americano, estabelecido após a I Guerra Mundial, que seria decisivo para a vitória sobre o nazifascismo, no segundo conflito mundial, ocorrida em 1945.
O chamado socialismo fabiano, promovido pela Escola de Economia de Londres, foi uma tentativa de disfarçar as velhas práticas imperiais britânicas sob uma nova roupagem mais “socializada”, algo semelhante ao que pretendem os promotores do “Reset”, com o insidioso recurso às pautas ambientais e identitárias, para preservar a hegemonia da alta finança “globalizada” sobre a economia real. Sob esse tecido mal reciclado, mal consegue ocultar-se a surrada ideologia ultraliberal e malthusiana das oligarquias transnacionais, cuja reencarnação mais recente, a mal denominada “globalização”, teve como resultado mais acentuado um profundo aumento das iniquidades socioeconômicas em todo o mundo, dentro da maioria dos países e entre eles.
A grande diferença com o “Reset” do Império Britânico, que transferiu o bastão hegemônico aos EUA “reconquistados” (como propunha o arquiimperialista Cecil Rhodes), é que não existe hoje ninguém que possa encarnar um novo hegemon, por mais que Joe Biden e Kamala Harris queiram representar uma face mais “humana” de um hegemonismo obsoleto, com um governo cujo lema bem poderia ser “Reset Primeiro”.